“Mãe reborn” que exigia licença-maternidade é condenada a pagar o processo, mas a conta cairá no nosso bolso

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Nos últimos dias, um dos assuntos mais comentados na internet é a febre das “mães reborn”, ou seja, mulheres de todas as idades, incluindo celebridades que aproveitaram a onda para ganhar likes e mais seguidores, que tratam bonecos ultrarrealistas como se fossem bebês de verdade.

Somente no TikTok – rede social onde postagens do tipo brain rot (apodrecimento cerebral) viralizam na velocidade da luz – o número de publicações de mães que “adotaram” bonecos de silicone já passa de 1 milhão.

O que para alguns não passa de uma brincadeira inofensiva pode ser apenas a ponta do iceberg de um declínio na saúde mental e do colapso do bom senso no nosso país. A situação torna-se ainda mais preocupante quando o delírio de uns começa a prejudicar o direito de outros.

Há poucos dias, uma recepcionista de 32 anos entrou com uma ação na Justiça do Trabalho, em Salvador (BA), depois que teve seu pedido de 120 dias de licença-maternidade negado pela empresa onde trabalhava. A mulher alegou que o afastamento seria para cuidar de Olívia, uma bebê reborn.

A ação chegou a ser protocolada na Justiça no dia 27 de maio, o que levanta basicamente três questões: como anda a saúde mental dessa mulher, onde está o bom senso da advogada que aceitou o caso e como uma Vara do Trabalho se prestou a protocolar tal ação.

Por conta da enorme repercussão negativa que o caso gerou, a autora desistiu do processo dois dias depois, mas a história não vai parar por aí. O advogado José Sinelmo Lima Menezes, cujo nome constava na petição inicial, diz que não participou do processo e alega falsificação de sua assinatura. Já a advogada Vanessa de Menezes Homem, responsável pelo caso, nega a fraude e afirma ter provas do envio da petição e da procuração em seu nome.

Diante do imbróglio, o juiz Júlio César Massa Oliveira, da 16ª Vara do Trabalho de Salvador, extinguiu a ação, mas encaminhou ofícios à Ordem dos Advogados do Brasil na Bahia, à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal para apuração de possíveis irregularidades. Ou seja, uma gama de servidores públicos pagos com dinheiro do contribuinte terá de empenhar esforços e gerar mais despesas para elucidar o caso.

A “mãe reborn” foi condenada a pagar R$ 800 de custas processuais, mas não tirará um centavo sequer do bolso, pois, apesar de ter condições de comprar uma boneca nada barata, conseguiu gratuidade na Justiça e está isenta do pagamento. Já os pagadores de impostos não terão a mesma sorte.

Há profissionais de saúde que legitimam o uso de bonecas realistas em certos contextos terapêuticos, como tratamentos de pessoas idosas, em luto ou com transtornos emocionais. Atualmente, estima-se que 20% das vendas de bebês reborn sejam para tratamento de pessoas com Alzheimer e demência. Contudo, mesmo nesses casos, especialistas afirmam que a infantilização e a mentira sobre o brinquedo (levando o paciente a crer que se trata de um bebê real) devem ser evitadas.

Para o psicoterapeuta e educador Léo Fraiman, atitudes como a da recepcionista de Salvador são reflexos do egoísmo e do egocentrismo da nossa sociedade. “Realmente estamos caminhando a passos largos para uma ‘Era de Umbigolatria’. Um momento em que a minha verdade se torna a única e eu a imponho sobre os demais. Cada um olhando para seu próprio umbigo e, o outro, se me frustra, merece ser agredido ou desprezado. Essa é uma das maiores causas do mal-estar e do decréscimo na saúde mental em nossa sociedade: a perda do contato com a realidade, com o outro, com o amor.”

O fato de pessoas, com ou sem diagnóstico, acharem que têm o direito de obrigar os outros a aceitarem suas fantasias e ainda usar a máquina pública para proveito próprio é inaceitável. Chega a ser ultrajante o desperdício de tempo da Justiça com uma ação que jamais deveria ter sido aceita, nem pela advogada e muito menos pela instituição judiciária. Enquanto isso, mães de verdade aguardam, em média, sete meses pelo julgamento de ações de verdade para conseguirem acesso a tratamentos de saúde e medicamentos de alto custo para seus filhos de verdade.

Se queremos viver em uma sociedade séria e minimamente justa, não podemos tratar fantasias como realidade, delírios como direitos ou falta de bom senso como “verdade de cada um”. Simplesmente não podemos.

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Colaborador

Patricia Lages, jornalista / Foto: Freila/getty images