Enem: o menor número de notas máximas da década
Dentre os quase 3,2 milhões de estudantes, apenas 12, sendo um de rede pública, alcançaram a nota 1000 na redação proposta pelo concurso no último ano. O que isso demonstra?
Desde 2009, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), instituído até então para avaliar o desempenho dos estudantes em disciplinas da educação básica, se tornou o principal método utilizado por jovens brasileiros para ingressar em universidades do País. Além de possibilitar a admissão de alunos em instituições privadas ou públicas por meio de programas do governo, o exame também é fundamental para definir a eficiência dos indicadores educacionais aplicados nas escolas, que apresentaram baixo índice no último ano.
A prova composta por 180 questões de quatro diferentes áreas de conhecimento também propõe o desenvolvimento de uma redação argumentativa, que representa 20% do grau final do candidato. Em 2024, o tema abordado foi Desafios para a Valorização da Herança Africana no Brasil e, dos cerca de 3,2 milhões de participantes, somente 12 alcançaram a nota máxima, sendo que apenas um deles é estudante da rede pública. O número de notas 1000 na disciplina é o menor registrado na década, de acordo com dados do Ministério da Educação.
No entanto, na edição anterior do concurso, do ano passado, 60 candidatos marcaram o grau máximo com textos redigidos a partir do tema Desafios para o Enfrentamento da Invisibilidade do Trabalho de Cuidado realizado pela Mulher no Brasil.
O reflexo da educação
Apesar do tema sugerido ser recorrente em debates e nas disciplinas lecionadas no ensino básico, a comparação dos últimos resultados do Enem revela, além de um déficit no repertório sociocultural, um declínio significativo na capacidade de interpretação, dissertação e argumentação dos brasileiros. Segundo Maitê Ferreira dos Santos, professora de literatura e interpretação de texto e auxiliar de coordenação do Colégio Progresso Bilíngue de Santos, a redação avalia a capacidade de leitura, expressão verbal, aplicação de conceitos, síntese e reflexão do aluno e, por isso, representa um dos principais parâmetros capazes de demonstrar o seu percurso de estudos. Para ela, a debilidade da educação atual nesse aspecto é reflexo da combinação de diferentes fatores que comprometem, cada dia mais, o ensino: “é preciso levar em consideração que esta é a primeira turma de ensino médio formada após a pandemia, ou seja, uma geração de alunos que finalizou a formação básica no modelo remoto, sem base para o desenvolvimento dos conteúdos necessários de forma plena. Outro aspecto é a influência da linguagem digital, a qual possibilita e permite marcas de oralidade e desvios da norma padrão, bem como de todas as ferramentas que facilitam o ato de pensar e o plano da expressão”.
Na prática, ainda que a constante evolução das novas tecnologias denote o avanço da Humanidade, sua influência pode, sim, impactar negativamente o aprendizado. Um recente levantamento realizado pela plataforma Preply, por exemplo, indica que 58% dos brasileiros não leem ou perderam o hábito da leitura, muito deles depois que foram atingidos pela dinâmica das redes on-line, isto é, “passar os olhos” em títulos superficiais, ignorando os textos com informações mais rebuscadas. Um comportamento que, inconscientemente, tem implicações desfavoráveis no conhecimento, na escrita e no raciocínio cobrado pelo Enem e outros vestibulares.
Maitê também pontuou que durante muitos anos foram aceitos pelos corretores do exame modelos prontos de redação, uma espécie de “copia e cola” de repertórios coringas, que impediu muitos de progredir a sua habilidade de aprofundamento em assuntos complexos. “Agora, a proposta é que a redação seja autônoma, ou seja, que mostre a autoria do aluno. Sendo assim, quando esse método engessado é utilizado nos textos, o aluno não consegue mostrar o seu perfil e o seu olhar crítico. Isso influenciou bastante para tão poucas notas 1000”, explica.
Outra grande questão, segundo Maitê, é a defasagem na atualização dos professores atuantes no País em relação ao novo plano de ensino aprovado pelo Ministério da Educação, que visa e aborda em seu material didático tópicos até então desconhecidos por uma parcela considerável de profissionais: “muitos que se formaram antes de 2012, por exemplo, não tiveram contato com as disciplinas que incluem as obras e literaturas africanas (que foram tema na redação do Enem), e, se tiveram, foi muito do básico. A realidade de cada profissional e escola é bem diferente”. Os resultados disso, é claro, acabam refletindo no ensino para os alunos dentro da sala de aula com a falta de capacidade para formar cidadãos conscientes e reflexivos como é esperado, além de provocar consequências para a qualidade da formação superior e de profissionais, provocando prejuízos no futuro de cada indivíduo e da sociedade de um modo geral.
É possível fazer diferente
Diante de tais problemas, Maitê acredita que a mudança do cenário educacional é possível por meio da aplicação de novos projetos que atendam às exigências de criticidade na preparação acadêmica dos estudantes brasileiros unido ao reforço dos docentes: “não podemos banalizar a educação pensando apenas no mercado. Trabalhamos com pessoas e conhecimento e temos que repensar o nosso papel dentro da sociedade para a formação dos alunos. E, para os próximos anos do exame, devemos buscar cada vez mais uma autoria nas redações, trazendo os mais variados imaginários. Um exercício interessante é fazer com que eles pensem e montem as próprias propostas para redigir, o que os levará a explorar as áreas do conhecimento, a construir um repertório de forma crítica e a discutir pensando em eixos temáticos como educação, saúde e meio ambiente, entre outros”.
Ela ainda evidencia a necessidade de contribuição de toda a comunidade, que é essencial para o aprimoramento do ensino. “O jovem está em processo de formação e nós, professores, pais e sociedade como um todo, pensando também em ministérios e Secretaria da Educação, devemos
ajudá-los a entender a importância dessa habilidade. É um trabalho que precisa ser feito em conjunto”, conclui.
(*) Colaborou: Eduardo Prestes
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