O risco que cabe em um comprimido

Casos recentes de problemas causados por remédios acendem o alerta sobre a automedicação, um hábito cultural que já figura entre as principais causas de intoxicação e morte evitáveis no Brasil

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Um remédio para a dor, um chazinho ou um antibiótico usado “por garantia”. Separados, eles parecem inofensivos, mas, juntos, podem desencadear reações capazes de comprometer a saúde e até colocar vidas em risco. Trata-se das interações medicamentosas. Elas são silenciosas, frequentes e, muitas vezes, invisíveis até que algo grave aconteça. O tema voltou ao centro das atenções depois da morte do cantor e compositor Lô Borges. Ele ficou internado em estado grave vários dias e faleceu em 2 de novembro, aos 73 anos, por falência múltipla dos órgãos causada por intoxicação por medicamentos.

Dias depois, em 6 de novembro, seis adolescentes de 13 a 15 anos foram encontrados intoxicados em uma escola da rede estadual paulista depois da ingestão de medicamentos de venda controlada. Dois estavam inconscientes e quatro em estado de sonolência. Em comum, os episódios evidenciam quão grave uma intoxicação pode ser e expõem que é necessário discutir a facilidade de acesso e o consumo desenfreado de remédios sem orientação.

O que ninguém vê

Marcelo Noronha, médico gastroenterologista e diretor do Hospital SerPiero, explica que interação medicamentosa é quando “um remédio modifica o efeito de outro”, aumentando ou reduzindo sua ação. Exemplos não faltam: os anti-inflamatórios podem elevar a pressão de quem usa anti-hipertensivos; os antibióticos podem reduzir a eficácia de anticoncepcionais, e a dipirona, analgésico amplamente usado no Brasil, pode aumentar o risco de hemorragia quando associada a anticoagulantes.

Do uso à ameaça

A desinformação, a demora para conseguir atendimento médico e o estímulo ao consumo impulsionam a automedicação no Brasil. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o hábito leva a dosagens erradas, combinações perigosas e mascaramento de sintomas que poderiam indicar doenças mais graves. De acordo com o Ministério da Saúde, em 2022, mais de 1,7 milhão de pessoas procuraram atendimento ambulatorial no Brasil por conta de problemas de saúde relacionados à interação medicamentosa ou pelo uso incorreto de remédios. Mais de 14 mil pessoas foram internadas por intoxicação medicamentosa no mesmo ano, um aumento de 18% em relação ao ano anterior. O Sistema Nacional de Informações TóxicoFarmacológicas (Sinitox/Fiocruz), que compila estatísticas desde 1994, reitera o alerta ao apontar que os medicamentos são a principal causa de intoxicação no País.

Segundo Noronha, a automedicação parece inofensiva porque “todo mundo faz”, mas o perigo está justamente aí: a maioria desconhece a dose correta, o intervalo, as interações e a toxicidade cumulativa. Ele lembra que o hábito, além de atrasar diagnósticos e mascarar sintomas, pode provocar alergias e ampliar a resistência bacteriana pelo uso indevido de antibióticos. Ele ainda enfatiza: “Medicamento não é suplemento. Ele interfere em várias vias de metabolismo e órgãos do corpo humano”. Além disso, ele cita alguns erros comuns: repetir receitas antigas, subestimar remédios “naturais” e acreditar que doses baixas não fazem mal.

O perigo de ter medicamentos sempre à mão

As farmácias se tornaram espaços de consumo abundante, com prateleiras repletas de opções para qualquer incômodo, da dor de cabeça à ansiedade. O remédio passou a ocupar o status de produto comum, adquirido por impulso, indicação de amigos, propaganda ou redes sociais. Se, por um lado, os avanços da ciência ampliaram o arsenal terapêutico e a expectativa de vida, por outro, tornaram mais complexas as interações entre substâncias. Em tempos de remédios à mão e informação pela metade, vale lembrar que todo comprimido carrega tanto o potencial de benefício como o de dano.

Informação é o melhor remédio

Para prevenir a intoxicação medicamentosa é preciso adotar as seguintes medidas: evitar a automedicação, inclusive de fitoterápicos (os chamados remédios naturais); manter uma lista atualizada dos medicamentos em uso; consultar um médico ou farmacêutico antes de combinar remédios; não repetir receitas antigas sem reavaliação; jamais usar medicamentos prescritos a outras pessoas; buscar pronto-atendimento ou uma Unidade Básica de Saúde em casos leves e acionar o Samu (192) em situações de urgência. Entender a bula pode parecer impossível, mas é nela que estão as instruções essenciais quanto a interações, contraindicações, forma correta de ingestão, efeitos esperados e sinais de alerta.

Em caso de suspeita de intoxicação, recomenda-se suspender imediatamente o uso do remédio e buscar atendimento de emergência, sobretudo se houver sinais neurológicos, respiratórios ou cardíacos. Nessas condições ou em consultas de rotina, “somente se for informado sobre os medicamentos que o paciente usa, mesmo que esporadicamente, o médico poderá avaliar riscos e interações”, conclui Noronha.

Efeito colateral e intoxicação: o que os diferencia?

O efeito colateral é uma reação conhecida, esperada e geralmente depende da dose utilizada. Já a intoxicação é um efeito tóxico por excesso, interação, uso indevido ou predisposição individual e pode colocar a vida em risco. A duração e a gravidade de cada caso dependem da substância, da meia-vida do medicamento, da função hepática e renal do paciente e da quantidade ingerida. Os sintomas mais comuns de intoxicação são náuseas, vômitos, dor abdominal, sonolência extrema, confusão, palpitações, arritmias, sudorese, tremores, convulsões, amarelamento dos olhos e alterações respiratórias.

Marcelo Noronha, médico gastroenterologista

 

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Colaborador

Flavia Francellino / Fotos: stefanamer/gettyimages, blackred/gettyimages