Escravizados pela Igreja Católica

A história de sequestro, tortura e tráfico mantido pelo Catolicismo durante séculos

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Oito de agosto de 1.444. O primeiro navio português transportando africanos escravizados chega a Portugal. Antes mesmo de atracar, já está decidido que a Igreja Católica receberá quatro das 235 pessoas sequestradas. Uma dessas pessoas, um homem adulto, já foi revendido pela Igreja antes mesmo de pisar em Portugal. Outra, uma criança, irá para o Convento de São Vicente do Cabo.

A cena está documentada e mostra o interesse e a participação da Igreja Católica no escravagismo desde o seu início. Nos séculos que se seguiram a esse primeiro sequestro de africanos, monges, padres, bispos e papas incentivaram as guerras dentro da África, os raptos e a tortura de seres humanos.

A Igreja Católica financiou e lucrou com o escravagismo, tanto na Europa quanto nas Américas.

“Nunca consideramos este tráfico ilícito. Na América, todo escrúpulo é fora de propósito”, afirma Luís Brandão, reitor do Colégio Jesuíta de Luanda, em carta na qual justifica o envolvimento de sua ordem religiosa no tráfico de escravos com o Brasil.

Hábito exportado ao Novo Mundo

Quando os portugueses chegaram às Américas, o escravagismo de africanos já estava consolidado em Portugal. Assim, exportar para o Brasil o hábito de arrancar seres humanos de suas famílias e torturá-los para trabalharem à força foi natural.

Em seu livro “Escravidão”, o historiador Laurentino Gomes relata que o escravagismo “era um negócio particularmente lucrativo porque a Igreja estava isenta pela Coroa portuguesa de pagar impostos e taxas alfandegárias no tráfico negreiro.”

Ele explica que tanto a escravização dos índios quanto a dos africanos recebeu grande apoio da Igreja, que não apenas utilizava essa mão de obra, como a considerava um milagre de sua santa de devoção:

“O padre Antônio Vieira atribuía o comércio de escravos a um grande milagre de Nossa Senhora do Rosário porque, segundo ele, tirados da barbárie e do paganismo na África, os cativos teriam a graça de serem salvos pelo catolicismo no Brasil.”

O que acontecia, porém, não era uma salvação; e sim uma maldição. O Brasil recebeu 4,9 milhões de escravos africanos entre 1.500 e 1.888. Inúmeros capturados a mando da Igreja Católica, pela qual eram torturados e mantidos cativos.

“Quase todos os bispos, padres, Ordens religiosas e conventos católicos no Brasil, em Angola e outras regiões da África e da América possuíram escravos, inclusive os franciscanos, que faziam votos de pobreza absoluta”, relata Gomes. “No começo do século XIX, a Ordem dos Beneditinos tinha mais de mil cativos trabalhando em suas fazendas no Rio de Janeiro e em São Paulo. No Maranhão, os frades do Carmo e os das Mercês possuíram escravos até março de 1887, ou seja, catorze meses antes da assinatura da Lei Áurea.”

De fato, já em junho de 1.452 o papa Nicolau V enviou carta autorizando Portugal a “a atacar, conquistar e subjugar africanos” para “capturar seus bens e territórios, escravizá-los e transferir suas terras para a Coroa portuguesa de forma perpétua”. Vale lembrar que a Igreja era parte importante do governo português.

A situação se manteve assim até 1.888, quando quase o mundo inteiro já condenava a prática há séculos. Às vésperas da abolição no Brasil, o papa Leão XIII emitiu, finalmente, uma condenação à prática.

Curiosamente, nessa época os católicos perceberam que era mais barato importar mão de obra europeia e pagar salários miseráveis do que manter escravizados em terras brasileiras.

Como era a vida dos escravizados

Laurentino Gomes ainda relata em seu livro que os sequestrados eram torturados e obrigados a adotarem nomes católicos. Repetir seus nomes de nascimento poderia resultar em pena de morte. Os sequestrados eram separados de sua família, arrancados de sua casa e transportados para o outro lado do mundo. O desespero do desconhecido era tamanho que muitos africanos acreditavam que os negros estavam sendo sequestrados para servirem de alimento a brancos canibais.

Muitos católicos afirmavam que negros não tinham alma, mas os batizavam – uma prática sagrada para sua religião – e os mantinham sendo torturados e escravizados.

Reportagem publicada recentemente pela BBC relata que as punições físicas praticadas por integrantes da Igreja Católica, muitas vezes, eram mais agressivas do que as de cidadãos de fora do clero:

“Os que se rebelavam quanto à conversão costumavam ser punidos com castigos ‘de forma exemplar’ ou seja, com intensidade suficiente para convencer os demais a não repetir gestos de desobediência”.

Essa mesma reportagem ressalta que os cativos pela Igreja eram chamados de “escravos da religião”. Todas as ordens religiosas da Igreja mantinham muito mais escravizados do que a média da população branca brasileira:

“Eu nem considero a Ordem de São Bento uma grande proprietária [de escravos]. Era uma megaproprietária, estava acima dos grandes proprietários, era a elite da elite”, relatou o historiador Vitor Hugo Monteiro Franco à reportagem.

Já o historiador Robson Pedrosa Costa afirma que “estas instituições [religiosas] construíram, ao longo dos séculos, grandes corporações, muito semelhantes a grandes empresas pautadas em um complexo sistema organizacional”.

Membros do Catolicismo incentivavam as escravizadas a terem muitos filhos, para escravizá-los também. Ao nascer, as crianças eram registradas sem o nome do pai, mesmo que a mãe estivesse em uma relacionamento há anos com o pai delas (a própria Igreja proibia o casamento quase sempre). Registrar os bebês dessa maneira impedia que os pais requeressem seus filhos. Somente pais escravizados pela própria Igreja constavam na certidão de nascimento de seus filhos.

Toda essa prática ainda envolvia o castigo físico.

“Tem um caso, em um fazenda de Cabo Frio, também dos beneditinos, em que dois monges foram presos depois de matarem, de tanto espancar, um escravizado. Isso no século 18”, relata a reportagem.

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Colaborador

Andre Batista / Foto: Getty Images