Cigarro eletrônico: milhões de adolescentes na mira

A epidemia silenciosa avança entre jovens e é alimentada por publicidade digital, mercado ilegal bilionário e a falsa percepção de segurança

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Eles estão por toda parte: nas ruas, nas universidades e, pasmem, até nas escolas do ensino fundamental. São os cigarros eletrônicos, também conhecidos como vapes ou “canetas” – em virtude de seu formato –, dispositivos de bateria que contêm um líquido composto de nicotina, solventes e aromatizantes. Quando aquecido, o usuário inala o aerossol produzido. Sem tabaco na “receita”, o discurso de que seriam mais “brandos” do que o cigarro tradicional impulsionou sua ascensão e vendeu ao público a ilusão de uma alternativa “mais saudável”. A promessa de menor dano à saúde criou um fenômeno global que em poucos anos se transformou no maior avanço da indústria da nicotina sobre crianças e adolescentes, desde a popularização do cigarro no século 20.

PORTA ABERTA

O adolescente que consome o vapor saborizado não percebe que perde os limites. A nicotina age de forma sorrateira, altera o humor, a atenção e a sensação de recompensa – e tudo isso prepara o terreno ideal para a dependência.

Há dispositivos com nicotina equivalente à de um maço inteiro de cigarro e, nos modelos descartáveis, a concentração pode ser ainda maior. Mas não é só isso. Produtos clandestinos, que representam a esmagadora maioria do mercado brasileiro, podem conter solventes industriais, restos de óleos, água sanitária, metais pesados cancerígenos e substâncias adicionadas maliciosamente. Ainda há misturas com tetraidrocanabinol (THC), componente psicoativo da maconha. Sem rótulos claros nem origem rastreável, existem ainda os riscos relatados com frequência por autoridades sanitárias, como explosões do dispositivo no rosto do usuário, queimaduras químicas e intoxicação por componentes de baixa qualidade.

FORA DA LEI

No Brasil, a comercialização de cigarros eletrônicos é proibida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), desde 2009. A proibição, porém, nunca conteve a demanda nem o mercado. Em 2024, a Receita Federal apreendeu R$ 1,1 bilhão em vapes, volume 57% maior do que o de 2023. Já um levantamento mostrou o tamanho desse mercado ilegal: em 2023, o comércio dos dispositivos e de sachês de nicotina movimentou R$ 7,5 bilhões sem recolher um único centavo de impostos.

PAIS DESINFORMADOS

Enquanto o uso explode entre jovens, muitos responsáveis continuam cegos. Uma pesquisa recente da Prefeitura do Rio de Janeiro mostra que a maioria dos pais não sabe identificar um vape, desconhece seus riscos e não imagina que os filhos podem usá-lo diariamente. A indústria, por sua vez, ao criar designs semelhantes aos de pendrives e embalagens que lembram eletrônicos comuns, colabora para essa invisibilidade. O levantamento, feito com jovens de 15 a 25 anos e seus responsáveis, revela que o primeiro contato costuma ocorrer entre os 14 e os 17 anos. Para eles, ocultar o hábito dos pais é simples: o vape gera pouca fumaça, tem cheiro quase imperceptível e cabe na palma da mão.

VERNIZ NOVO

Vapes são produtos meticulosamente pensados para seduzir. Suas cores vibrantes, formatos minimalistas e sabores que remetem à infância – algodão-doce, chiclete, torta de limão – trocam a noção de perigo por uma estética de estilo. Embalagens arrojadas o transformam em mero “acessório” e deixam em segundo plano o fato de serem perigosos. Essa narrativa ganha força nas plataformas digitais, que preferem se omitir, enquanto influenciadores convertem o vape em objeto de desejo ao mascarar os riscos por trás das tragadas adocicadas. Milhões de adolescentes são atraídos não apenas pelo vapor, mas pelo discurso de pertencimento e modernidade que envolve o produto.

Diante desse cenário, estamos em uma encruzilhada: assistir à captura de uma geração pela “nicotina moderna”, agora embalada em LED, glitter e aroma de algum doce, ou agir com a mesma velocidade com que a indústria reinventou o vício. Não se trata apenas de uma questão de saúde pública, mas de uma disputa desigual entre adolescentes vulneráveis e uma engrenagem comercial veloz, sedutora e plenamente consciente do público que escolheu mirar: jovens que compram rápido, questionam pouco e compartilham tudo.

Afinal, o que ainda precisa acontecer para que o vape deixe de ser tratado como um brinquedo tecnológico? Se nada mudar, ele será lembrado não como um fenômeno de consumo, mas como um produto com o qual permitimos que uma geração negociasse – e negligenciasse – a própria saúde.

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Colaborador

Flavia Francellino / Foto: SolStock/getty images