Abandono dos estudos: condição que emperra o futuro de crianças e adolescentes

Evasão escolar segue em alta no Brasil e é função das famílias, das escolas, da sociedade e do governo combatê-la

O número de casos de covid-19 já diminuiu, mas os impactos das medidas tomadas no período mais crítico ainda estão latentes no Brasil. Um deles é a evasão escolar, ou seja, o abandono dos estudos. Segundo um levantamento realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), cerca de 2 milhões de crianças e adolescentes brasileiros com idade entre 11 e 19 anos estão fora das salas de aula, o que corresponde a 11% desse público, que hoje está sem perspectiva de retornar aos estudos.

O cenário é preocupante e precisa ser analisado com cautela, afinal não existe uma causa única, mas inúmeras. Renato Casagrande, pesquisador em gestão da educação e presidente do Instituto Casagrande, explica que “falta o entendimento por parte de alguns pais e familiares da importância da escola e do prejuízo que a criança terá na vida adulta pela ausência dos estudos. Sentimos isso na pandemia, porque muitos responsáveis não se mobilizaram para a volta das crianças quando as aulas retornaram presencialmente. Muitos consideram que a ajuda da criança no trabalho de casa ou para cuidar dos irmãos mais novos é mais importante”, diz. A necessidade de cuidar de familiares corresponde a 28% dos casos de evasão.

Outro fator determinante é o desinteresse por parte da própria criança em decorrência da dificuldade de aprender (30%). A presidente do Conselho Regional de Educadores e Pedagogos do Estado de São Paulo (CFEP), Fernanda Gimenes, aponta a possibilidade de transtornos de saúde: “o aluno pode se sentir desmotivado por apresentar, por exemplo, transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), que pode não ter sido diagnosticado pela escola e pela família”. Ele se caracteriza por sintomas como desatenção, inquietude e impulsividade. Assim, a falta de habilidade da escola e dos professores para lidar com essas situações pode levar o estudante a se sentir deslocado e a desistir dos estudos.

Com relação aos adolescentes, outra questão relevante é a gravidez precoce. Dados de 2020 do Sistema de Informação de Nascidos Vivos do governo federal apontam para “cerca de 380 mil gestações de meninas em idade escolar, com idade entre 10 e 19 anos, o que dificulta o acompanhamento das aulas e estimula a evasão escolar”, destaca Fernanda.

Segundo o Unicef, o abandono dos estudos acontece principalmente entre os mais vulneráveis e muitos deles trocam a dedicação à educação básica pelo trabalho, conforme comenta Casagrande: “muitos adolescentes precisam gerar renda para ajudar a família. Por falta de instrução, muitos pais até os incentivam porque acham que eles se beneficiam mais fazendo isso do que cursando o ensino médio. Então, podemos dizer que o ensino médio no Brasil é um gargalo na educação”.

Casagrande ainda cita como motivo de desânimo a desatualização do sistema de ensino, que não tem acompanhado os avanços tecnológicos nem as necessidades do grupo: “o modelo pedagógico que nós temos é muito arcaico e faz com que o aluno se evada. Ele acha a escola chata e, se não tem uma família que o apoie, ele começa a ‘matar’ aula. Ele engana o pai, pois vai à escola, mas começa a não frequentar mais as aulas. Por isso é preciso que ocorra uma mudança”.

Entre as iniciativas governamentais que buscam alterar essa dinâmica estão o novo ensino médio para os maiores e, para o público infantil, o aplicativo GraphoGame, desenvolvido para auxiliar na alfabetização. Em forma de jogo, o uso da plataforma é recomendado aos que estão aprendendo as relações entre letras e sons e ela insere desde cedo a realidade tecnológica na educação.

Impactos da ausência
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional diz que é obrigação dos pais ou responsáveis matricularem as crianças na educação básica a partir dos quatro anos de idade. Frequentar a escola promove o desenvolvimento das capacidades cognitivas e motoras, além de levá-las ao convívio social além do núcleo familiar. “A partir do momento que essa criança se afasta do ambiente escolar há o impacto socioemocional, dificuldade de aprendizado e, a longo prazo, dificuldade de entrar no mercado de trabalho”, diz Fernanda.

Em um mundo dinâmico e em que os aspectos cognitivos são mais valorizados do que o trabalho físico temos visto muitos profissionais perderem o emprego para a inteligência artificial. Dessa forma, enquanto o mercado sofre com a falta de mão de obra qualificada, aqueles “que não completam o ensino médio, não fazem um curso profissionalizante nem um curso superior tendem a ficar excluídos, porque nós precisamos cada vez mais de profissionais que tenham um entendimento maior do mundo, o que inclui a questão cultural, capacidade de raciocínio e de lidar com a tecnologia. As perspectivas futuras estão atreladas ao nível de conhecimento e ao nível cognitivo do estudante, assim o fato dele não frequentar a escola pode gerar aumento da taxa de depressão e até mesmo de suicídio desses jovens”, destaca Casagrande. Além disso, a baixa escolaridade deixa a pessoa mais vulnerável à criminalidade, o que afeta a sociedade como um todo.

Revertendo o cenário
O cenário, que já é assustador, pode piorar: 21% dos estudantes entre 11 e 19 anos entrevistados pelo Unicef relataram que pensaram em desistir dos estudos nos três meses anteriores à pesquisa. Contornar essa situação exige empenho da gestão da escola, dos professores, da família e do governo.

“A escola precisa ter informações sobre a rotina da criança e sobre seu relacionamento familiar. Isso é importante para que as ausências sejam percebidas antes da evasão se tornar realidade e poderem ser tomadas medidas preventivas e não apenas reativas. Os professores precisam estar preparados para estabelecer um relacionamento com os responsáveis”, ressalta Casagrande

Ao passo que a família deve ser presente na vida escolar durante toda a educação básica, como sociedade, precisamos exigir do governo “políticas que valorizem cada vez mais a participação da família e que eventuais auxílios financeiros sejam atrelados à frequência do estudante”, conclui Casagrande.

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Colaborador

Cinthia Cardoso / Fot: Getty Images