Motoristas que assumem o risco de matar

Imprudências no trânsito destroem vidas e custam cerca de R$ 50 bilhões por ano aos cofres públicos

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O dia 31 de dezembro de 2011 marcou para sempre a vida de Patrícia e Márcio Silvestre (foto ao lado). Era início de noite quando eles saíram de carro para buscar Severina, a mãe de Patrícia. A família se reuniria na residência dos dois para comemorar a chegada do novo ano, mas o veículo deles teve uma pane elétrica durante o caminho de volta. Márcio estava ao volante e parou no acostamento para esperar ajuda. Não deu tempo. Após alguns minutos, uma caminhonete em alta velocidade atingiu o carro deles, que capotou. Severina morreu na hora. Márcio ficou gravemente ferido. O motorista da caminhonete se recusou a fazer o teste do bafômetro, mas o exame toxicológico apontou que ele estava bêbado e que tinha usado algum tipo de droga.

“Quando meu marido chegou ao hospital, o pessoal da doação de órgãos veio conversar comigo. Ele só tinha 2% de chance de vida”, lembra Patrícia, que tem 42 anos. Márcio ficou 20 dias na UTI. Depois, permaneceu mais um mês internado. Ele saiu em uma cadeira de rodas, sem poder mover nenhuma parte do corpo. “Nossos sonhos foram interrompidos. Perdi fases do meu casamento, o Márcio perdeu a adolescência dos nossos filhos e eu tive que parar de trabalhar para cuidar dele”, conta. Antes do acidente, Márcio era mecânico. Hoje, aos 45 anos, ele está tetraplégico, não fala e só se alimenta por meio de sonda. “Meu marido era um homem muito batalhador, trabalhava bastante, um bom pai, um homem honesto, ele teve a vida interrompida”, lamenta.

Mesmo depois de receber alta, Patrícia conta que Márcio voltou a ficar internado em estado grave e teve escaras, nome dado a feridas profundas que surgem em pacientes acamados. Durante dois anos, ele fez fisioterapia de segunda a sexta-feira. Apesar do acompanhamento com especialistas, seus pés e mãos estão atrofiados.

A pena para o motorista alcoolizado foi suspensão da carteira de habilitação e serviços comunitários. “A sensação de impunidade é muito grande. Ele matou minha mãe e está solto. Ele nunca veio saber como estávamos e recorreu duas vezes do pedido de pensão para os cuidados do Márcio. Estamos aguardando novo julgamento”, diz Patrícia, que busca forças no apoio dos filhos, Marcelo, de 18 anos, Júnior, de 20 anos, e Daiane, de 24 anos.

Tragédia

O caso de Patrícia e Márcio é apenas um entre milhares que ocorrem todos os anos no País. Só em 2015, a violência no trânsito deixou 38.651 mortos, segundo o Ministério da Saúde. O custo dos acidentes foi de R$ 52 bilhões naquele ano, de acordo com o Observatório Nacional de Segurança Viária. O valor inclui gastos com mobilização de equipes, atendimento médico, remoção de corpos, tratamentos e danos ao patrimônio público, entre outros. Os acidentes de trânsito estão em segundo lugar entre as ocorrências que mais geram atendimento nos serviços públicos de emergência no Brasil. Entre 2010 e 2015, eles custaram mais de R$ 1,3 bilhão só ao Sistema Único de Saúde (SUS).

“O Brasil tem um problema sério de comportamento. Muitos condutores não percebem os riscos e acham que nunca vai acontecer nada com eles, mas 95% dos acidentes ocorrem por falha humana. Esses motoristas desrespeitam a legislação e esquecem que uma desatenção mínima pode se tornar um acidente grave”, alerta Renato Campestrini, gerente técnico do Observatório Nacional de Segurança Viária. Até mesmo as infrações gravíssimas continuam comuns em ruas e estradas do País, como dirigir com o celular na mão ou após consumir bebidas alcoólicas.

Além da imprudência ao volante, Campestrini afirma que a falta de manutenção dos veículos contribui com o alto índice de acidentes. “Muitos são descuidados e só trocam o pneu quando ele fica bem gasto e só lembram do limpador de para-brisas quando já não enxergam mais nada. A manutenção deve ser preventiva, o motorista deve observar pneus, rodas, freios, luzes, todos os componentes do veículo”, diz.

Mais riscos

Durante os feriados de Natal e Ano-Novo, o volume de carros se deslocando em estradas e avenidas aumenta e o risco de acidentes também. As festividades acabam mudando o ritmo de vida das pessoas, o que pode prejudicar o desempenho ao volante, como alerta Alberto Francisco Sabbag, médico especialista em medicina de tráfego e diretor da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet). “Nessa época, temos um aumento no número de veículos e muitas pessoas sem experiência assumem a tarefa de dirigir em situações em que não estão acostumadas, como à noite ou em rodovias. As festividades deixam as pessoas em clima eufórico, algumas ficam ansiosas, distraídas, outras comem demais, ficam cansadas, sonolentas, sentem mal-estar, tudo isso afeta o desempenho no trânsito”, enumera.

O médico reforça que todo motorista só pode assumir o volante se estiver em plenas condições físicas e psicológicas. Afinal, o trânsito exige atenção constante e qualquer falha pode ser fatal. Sabbag lembra que a embriaguez ao volante é crime no Brasil e nenhuma quantidade de álcool é permitida. Segundo ele, mesmo em pequena quantidade, o álcool provoca diversas alterações no corpo. “O álcool diminui os reflexos e o senso crítico. Ele é um depressor do sistema nervoso central. Em um primeiro momento, muitas pessoas se sentem empolgadas, mas na verdade a bebida deprime as respostas do corpo e a pessoa não sabe o que é real e o que é imaginação. Quem dirige depois de beber é criminoso”, afirma.

Sabbag ainda destaca que o uso de smartphones representa um risco para todos. Segundo ele, o ideal é estudar o trajeto antes de sair de casa e evitar olhar para a tela do aparelho enquanto dirige. “Dois segundos de distração podem fazer a diferença entre a vida e a morte”, conclui.

Fiscalização

Desde 2012, a chamada Lei Seca (Lei nº 12706/2012) aumentou a punição aos condutores que dirigem depois de ingerir álcool. Motoristas que apresentam índice a partir de 0,34 miligrama de álcool por litro de ar expelido no teste do etilômetro respondem na Justiça por crime de trânsito e se condenados podem cumprir de seis meses a três anos de prisão. Além disso, a multa para quem dirige alcoolizado é de R$ 2.934,70.

“Nosso desafio é reduzir o número de mortes e preservar mais vidas. Muitos cidadãos reclamam da fiscalização, mas é dessa forma que o Estado tenta coibir os excessos e o desrespeito à legislação. Bebida e direção é uma mistura explosiva”, explica Raul Vicentini, diretor do Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran-SP). Desde 2013, o órgão coordena o Programa Direção Segura, ação para a prevenção e redução de acidentes e mortes no trânsito causados pelo consumo de álcool combinado com direção.

“A fiscalização é o momento que o Detran tem para conscientizar e alertar o condutor. Ela integra equipes das polícias Militar, Civil e Técnico-Científica. Com os esforços dessas equipes, conseguimos aumentar o número de fiscalizações e o número de autuações por embriaguez vem diminuindo, o que mostra que o cidadão está um pouco mais consciente”, avalia.

Mais vítimas

O alto preço da imprudência de motoristas bêbados costuma ser pago pelas vítimas.

Em julho deste ano, um grupo de cinco amigos que havia saído para comemorar o diploma de graduação de um deles acabou sendo atropelado. O acidente ocorreu em um cruzamento no Centro da capital paulista. Os jovens caminhavam em direção a uma estação de metrô quando foram surpreendidos pelo condutor alcoolizado. “A lembrança que temos é só de ouvir o barulho do carro, olhar para trás e ver o farol alto. Foi muito rápido, não deu tempo de ter nenhuma reação, o carro estava em alta velocidade”, lembra Daiane Souza, de 24 anos, que sofreu escoriações e desmaiou logo depois do choque.

Já Aline Joicy, também de 24 anos, teve traumatismo cranioencefálico. “Cheguei ao hospital inconsciente, fiz cirurgia de emergência para drenar um hematoma do crânio e fiquei internada dois dias na UTI e três na clínica médica da neurologia”, explica. Bruno Conceição, de 22 anos, fraturou o tubérculo médio, um osso do ombro. Igor Santos, de 21 anos, quebrou a clavícula esquerda. “Fiquei afastado do trabalho e da faculdade por duas semanas. Meu tratamento durou dois meses e usei a tipoia e tive que ter acompanhamento do médico até o mês passado. Isso tudo sem contar o meu psicológico, que está abalado até hoje”, conta

Gabriel Leite, de 25 anos, que havia acabado de terminar a faculdade, foi o mais ferido. Quase perdeu o braço direito e passou por quatro cirurgias em 22 dias de internação. “Ainda vou passar por mais uma cirurgia em janeiro para colocar placa no osso, pois ele ainda não colou. Vai ser necessário um enxerto ósseo, vai ser retirado um pedaço de osso da minha bacia”, detalha o jovem, que está afastado do trabalho por tempo indeterminado.

O motorista que atropelou o grupo tem 23 anos. Ele se submeteu ao teste do bafômetro, que indicou a presença de 0,73 miligrama de álcool por litro de ar, quantidade que configura crime de trânsito. Ele chegou a ser detido, mas pagou fiança de R$ 5 mil e foi liberado. O processo aguarda julgamento.

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Colaborador

Por Rê Campbell / Fotos: Fotolia, Marcelo Alves, Folhapress e cedida / Arte: Edi Edson