Individualismo e impunidade
Há mitos que refreiam a evolução de um povo, mas são extremamente convenientes a dois tipos de pessoas: os imaturos e os passivos
Há duas pragas que assolam o Brasil. Uma é a grande incidência da chamada “geração mimimi”, que, mimada demais (embora composta de adolescentes ou adultos), acha que tudo e todos têm que agradá-la, que não deve obedecer a regras, que só deve fazer algo quando quiser e que não é muito fã de respeitar os direitos dos semelhantes. Essa infantilização permanente torna a convivência com gente assim estressante e improdutiva.
Outra praga é um sentimento que vem um pouco ao encontro da vontade da primeira: o mito de que ninguém pode reclamar de nada. Se alguém comete um ato de desrespeito ao próximo, só pensa em si e prejudica outros, ai daquele que mostra sua opinião contrária em relação a isso.
Papéis trocados
Uma das causas da primeira praga é exatamente o que foi descrito acima: pais que, escolhendo o caminho mais fácil, mimam demais os “príncipes” e “princesas” que acham que, no mundo lá fora, todos se curvarão a suas vontades. Se batiam pé dentro de casa e os pais se curvavam, não tendem a respeitar outras pessoas do convívio social. Daí o péssimo comportamento de alguns nas escolas e faculdades atuais, onde tudo parece ser permitido. E coitada da instituição que aplicar medidas disciplinares. Ela passa a ser vista como vilã e enfrenta até processos na Justiça.
A causa da segunda tem um pouco a ver com isso. Atualmente, parece que todo mundo gosta da velha figura chamada popular e vulgarmente de “vaca de presépio”: ela aceita tudo e fica quietinha enquanto à sua volta os outros aprontam tudo o que querem. Se a pessoa fica quieta, passa uma falsa imagem de “legal”, de “gente fina”, quando na verdade quem os rotula assim está apenas satisfeito pelo fato de não ser contrariado.
Daí o reclamante passa a ser o “vilão” da história. Na sociedade brasileira esse mito perdura há gerações. Para a maioria, quem reclama de algo ruim é que está errado e quem praticou o erro transfere sua culpa e sai ileso. Por isso, talvez, os recentes julgamentos sobre corrupção política causem espanto: há séculos, todos os corruptos estavam satisfeitos com as “vacas de presépio” que deixam tudo acontecer e geram mais impunidade.
Passividade conveniente
O perigo de quem tem essa atitude passiva – parece que é proibido ter opinião, o que agrada a mentes medíocres de ambos os lados – é exatamente esse: a perpetuação da impunidade. Recentemente um jornal sul-mato-grossense relatou o caso do responsável por um imóvel que alugou uma caçamba para retirar objetos do lugar por causa de uma reforma. Antes mesmo de a limpeza acabar, um vizinho abarrotou a caçamba com seu lixo, que incluía de pequenos utensílios a grandes móveis, o que gerou prejuízo para quem pagou pelo serviço.
O homem contou ao jornal que ia tirar satisfações com o vizinho folgado (um exemplo da primeira praga), mas, talvez pressionado pelo mito social de que a ninguém é permitido reclamar, desistiu. Claro que vai ter que pagar por outra caçamba por causa disso. Foi saudável ele não agir impulsivamente e arranjar uma confusão desnecessária, mas deixar por isso mesmo, não.
O grande perigo da passividade, nesse caso, é justamente o que fica na mente do vizinho malandro: fez algo que sabe muito bem que é errado, mas, como não foi penalizado, não será a última vez. Grande parte da impunidade que reina no Brasil se deve ao tipo de atitude mostrada por ambos os envolvidos nessa questão.
Diferenças de visão
Em países mais sólidos na questão social, o ato de reivindicar seus direitos é usado como impulso para a evolução. Um caso recente na França mostrou isso. Certa marca multinacional de eletrônicos lançou televisões com um problema: conforme o aparelho esquentava, uma peça (“curiosamente” instalada ao lado da maior fonte de calor do equipamento) se queimava pela proximidade e a TV pifava. Após investigações, o governo francês diagnosticou que a peça em questão poderia ser instalada bem longe da fonte de calor e isso aumentaria a vida útil do eletrônico em quatro vezes. Foi dado ao fabricante um ultimato: ou alterava a posição do componente ou seria proibido de vender suas TVs no país.
Um modo prático e maduro de encarar a situação: o consumidor reclamou, o governo o ouviu e quem realmente errou teve de consertar a falha. A marca se desculpou, resolveu tudo e as vendas vão muito bem, obrigado. E mais: reconquistou a confiança da clientela.
Caso fosse em outros países adeptos do “reclamar é feio”, o reclamante ganharia a imagem de “crítico demais”, de “personalidade forte” e a fábrica continuaria a lucrar com a má-fé, como se nada tivesse acontecido. Impune, a empresa continuaria a lesar a população, que perpetuaria seu papel de presa dócil e fácil. Conveniente, não?
A imaturidade de ambos os lados da questão é, na verdade, um disfarce. É apenas uma atitude de conveniência para suprir um perigoso jogo de interesses que freia o desenvolvimento pessoal e social. Mas os dois lados, fãs das vantagens que isso gera, preferem continuar a disseminar a prática.
Seu lado da história
Cabe, então, a cada um se analisar. Se você não gosta que alguém expresse uma opinião contrária à sua, em vez de rotulá-lo, que tal pensar um pouco para ver se ele tem razão? Caso tenha, procure resolver a situação (de verdade, não só nas aparências), o que trará maturidade e evolução para ambos os lados. Caso não tenha, o diálogo sensato de ambos os lados também será esclarecedor.
Isso lembra que, do outro lado, é claro que é preciso ver se algo merece mesmo uma reclamação ou não e se é só um capricho. A questão nunca foi a reclamação em si (o foco errado), mas o modo como foi feita – e recebida.
O que não pode perdurar é o mito de que todo mundo deve ser aquele sujeito “boa- praça”, que pode ser pisado e contrariado e nada vai acontecer, pois ele nunca tomará uma atitude mesmo.
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