A monetização da ingenuidade das crianças

Sem pensar nas consequências, pais expõem filhos na internet em busca de fama e dinheiro

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O dia a dia das famílias nunca esteve tão exposto como hoje. Em poucos cliques, é possível conhecer os integrantes do lar, suas alegrias e até mesmo seus desafios. Nesse cenário, um grupo se destaca: as crianças. O carisma infantil atrai curtidas e seguidores, que muitas vezes se transformam em oportunidades de monetização.

Muitas plataformas pagam os criadores de conteúdo quando suas postagens fazem sucesso. A visibilidade ainda pode gerar anúncios, parcerias e até vendas de produtos. Na prática, cada curtida ou comentário passa a ser visto como uma chance de ganhar dinheiro, e os limites sobre o que publicar começam a se perder.

Perfis precoces

Estamos chegando a um ponto tão crítico que o anúncio da gravidez já vem acompanhado da criação de um perfil dedicado à criança. As imagens encantadoras, aos poucos, dão lugar a cenas dos primeiros passos, das primeiras palavras e de cada acontecimento na vida da criança. Mas não são só os momentos de conquista que aparecem: choros e birras também ganham espaço nas redes e alcançam proporções inimagináveis, trazendo riscos que muitas vezes passam despercebidos pelos pais.

O fenômeno ganhou uma dimensão tão grande que recebeu até um termo para classificá-lo: oversharenting — uma junção das palavras em inglês over, que significa algo excessivo; share, que é compartilhar; e o final da palavra parenting, que remete à criação de filhos.

Consequências graves

A psicóloga Camila Lessa explica alguns riscos dessa prática: “A superexposição da imagem de crianças na internet pode trazer impactos emocionais significativos, especialmente porque elas estão em fase de formação da identidade e da autoestima”, diz. “Entre os principais riscos estão o comprometimento da privacidade, a ausência de controle sobre a própria imagem e sentimentos de invasão, vulnerabilidade e perda de autonomia. Além disso, a pressão social e as comparações ao se verem constantemente expostas podem gerar insegurança e baixa autoestima”, lista.

É importante lembrar que o conteúdo on-line não se perde, podendo ser recuperado em outros períodos por colegas da escola, por exemplo. Assim, aquele vídeo engraçado do bebê pode ser usado como ferramenta de bullying. “Ainda há o risco de a criança passar a associar seu valor ao retorno virtual, como curtidas e comentários, prejudicando a formação de uma autoimagem sólida e independente”.

O ponto de vista da justiça

Expor demais crianças e adolescentes na internet pode ser visto como uma forma de abuso por parte dos pais e também como uma violação das leis de proteção à infância. Segundo a advogada Larissa Claudino Delarissa, sócia da Brasil Salomão e Matthes Advocacia, do ponto de vista jurídico, a superexposição pode caracterizar abuso de poder parental, que é o de assegurar a criação, a educação e a proteção dos filhos.

“Embora pareça inofensivo, o sharenting pode trazer sérias consequências jurídicas aos genitores e acarretar riscos concretos aos direitos da criança ou do adolescente exposto. A exposição excessiva pode comprometer o desenvolvimento saudável do menor de idade, violar seus direitos fundamentais – como à intimidade, à privacidade e à imagem – e, em situações mais graves, ensejar a responsabilização dos pais”, explica.

Mudanças na lei

A relação entre crianças e redes sociais tem sido tema de debates mundiais. No Brasil, foi sancionado recentemente o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente (ECA – Digital). O texto visa proteger o público infantil, inclusive permitindo a retirada de conteúdos que violem o direito da criança e do adolescente. O Projeto de Lei exige maior responsabilidade das grandes empresas de tecnologia na proteção desse grupo. Perfis de menores de 16 anos, por exemplo, devem estar vinculados aos dos pais e as plataformas precisam ter verificação de idade confiável.

Mesmo com toda a proteção legal, a responsabilidade dos pais e tutores é fundamental. É preciso colocar a saúde física e emocional da criança acima de qualquer vantagem. Mesmo que ela queira estar on-line, cabe ao adulto explicar os riscos e estabelecer limites. Afinal, crianças não são mercadorias, mas seres humanos em formação que precisam ser protegidos.

Estratégias para proteger o bem-estar da criança nas redes sociais

  • Estabeleça limites de tempo: Defina períodos equilibrados para o uso de redes sociais.
  • Perfis protegidos: Mantenha os perfis da criança fechados e restrinja quem pode visualizar o conteúdo.
  • Controle o que é compartilhado: Evite divulgar informações pessoais e supervisione publicações familiares.
  • Dê o exemplo: Reduza sua própria exposição nas redes, mostrando boas práticas de uso digital.
  • Estimule vínculos e atividades com outras pessoas: Promova interação social fora do ambiente virtual, como esportes, atividades culturais e momentos em família.
  • Educação digital: Ensine sobre segurança on-line, cyberbullying, respeito e responsabilidade nas interações virtuais.
  • Respeito e autonomia: Ajude a criança a respeitar o espaço dos outros e a valorizar a própria identidade.

Fonte: Camila Lessa, psicóloga

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Colaborador

Cinthia Cardoso / Foto: zeljkosantrac/getty images