Brasil à base de remédios

Mais de 56,6 milhões de caixas de calmantes e medicamentos para dormir foram vendidas em 2018. Será que cabe mesmo aos comprimidos o papel de aplacar todos os seus problemas?

Imagem de capa - Brasil à base de remédios

Em 2018 foram comercializadas mais de 56,6 milhões de caixas de medicamentos para controlar a ansiedade e para ajudar a dormir. Por hora, foram vendidas 6.471 caixas e, em 365 dias, possivelmente ingeridos um total de 1,4 bilhão de comprimidos.

Os números são do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC) e fazem parte de um levantamento de oito princípios ativos: alprazolam, bromazepam, clonazepam, diazepam, lorazepam, flunitrazepam, midazolam e zolpidem, vendidos em farmácias e drogarias entre 2011 e 2018. Os dados foram acessados com exclusividade pelo portal de notícias R7 na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Estimativas da Associação Brasileira do Sono já apontaram que cerca de 73 milhões de pessoas sofrem de insônia no País. Também cabe lembrar outro problema: a ansiedade, epidemia que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), afeta 18,6 milhões de brasileiros e coloca o País no ranking dos mais ansiosos do mundo. A questão que surge é: a ingestão está sendo feita de forma responsável?

O QUE SÃO?
Em entrevista à Folha Universal, Cláudio Meneghello Martins, médico psiquiatra e diretor-secretário da Associação Brasileira de Psiquiatria, esclarece que os oito princípios ativos listados anteriormente pertencem à família dos benzodiazepínicos, grupo de fármacos que contém propriedades tranquilizantes, sedativo-hipnóticas e/ou anticonvulsivantes. “O que difere um do outro é a variabilidade na ação”, explica.

Ele reforça que, por serem remédios controlados, a venda deve ser feita apenas sob orientação médica. “Contudo existe um grande mercado paralelo, como ocorre com todos os fármacos no Brasil, e se instala um processo de dependência desse perfil de medicação”, afirma o psiquiatra. Ele acrescenta que “tem um porcentual grande de pessoas que fazem uso disso. Não sei até que ponto podemos estabelecer uma correlação com o indicador, mas sabemos que o uso inadequado e também a desassistência no sistema de saúde pública, que tem muitas limitações, podem favorecer o número.”

Quanto à automedicação, Martins lembra que “sempre é um risco” e também as consequências do uso, sobretudo, a longo prazo. “Grandes danos vão para a área cognitiva, para capacidade de concentração, a memória, o prejuízo na capacidade laboral e na produção do dia a dia. Nos idosos, muitos pensam se tratar de um processo demencial, o que, na verdade, é um déficit vinculado ao uso dessa substância.”

DEPENDENTES?
O clonazepam já teve seus dias de salvador da pátria – e do sono – de muitos brasileiros. Em 2010, foram comercializadas cerca de 2,1 toneladas desse princípio ativo, o que faz do Brasil o maior consumidor do mundo. No entanto, a principal indicação do remédio, que é tratar crises de ansiedade e epilépticas, perde seu reconhecimento de base para seu efeito colateral: como promove o relaxamento muscular, o sono vem incluso no pacote e isso explica a grande procura.

O especialista explica que dormir é essencial e que a ausência de sono pode agravar o desempenho e causar irritabilidade. Ele menciona que, no caso dos remédios que, muitas vezes, são procurados porque “alguém disse que é bom”, o que pode ser visto como um case de sucesso, pode camuflar um “efeito placebo” – espécie de resposta positiva atribuída a um remédio sem que, necessariamente, sua ação se deva a ele.

PROBLEMA ADORMECIDO?
A verdade é que muitos problemas, seja de cunho pessoal, seja profissional, físico ou amoroso, têm tirado o sono e o sossego de muitas pessoas. E, muitas vezes, diante do desespero, um comprimido pode ser encarado como o atalho mais rápido ou mais fácil. Mas será que cabe às pílulas, a responsabilidade de solucionar conflitos, questões sentimentais e problemas do dia a dia? Compete às drágeas e cápsulas aplacar tudo isso e o que mais aparecer? A geração que contava carneirinhos e tomava leitinho quente para embalar o sono está sendo substituída pela que se apega a uma cartela de remédios?

“ERA UM PESADELO”
A auxiliar de departamento pessoal Francesli Laranjeira, (foto abaixo) de 66 anos, usou todas as armas possíveis para driblar a insônia. “Tinha 15 anos quando comecei a tomar remédios. Minha mãe ficou preocupada”, expôs. Naquela altura, dona Fran, como é conhecida, trabalhava pela manhã e estudava à noite.

Todo esse arsenal “tarja preta”, no entanto, nunca fez efeito, conta. “Nos primeiros 15 dias de uso marquei um retorno ao médico e passei a tomar dois por dia. Mas parecia que o efeito era contrário: o olho ficava ‘estalado’ e eu não dormia. Não tinha explicação para a ineficácia do tratamento. Aos 23 anos, já casada há dois anos, parei de tomá-los. Se quando se dorme mal se tem problema, imagina não dormir? Me ensinaram a tomar leite morno com açúcar, maracujá, mas nada me ajudava a dormir. Não é que eu dormia pouco, eu literalmente não dormia. Estava constantemente pronta para atacar, sempre nervosa. Era um pesadelo constante.”

ÚLTIMA TENTATIVA
Embora o problema tenha se acentuado na adolescência, Fran não sabia o que era descansar bem de verdade desde os oito anos. Aos 33 anos, se lembra de um desabafo feito a Deus. “Eu disse: ‘se o Senhor existe, por que não me mostra um caminho?’” Foi quando se deparou com uma programação da Universal na TV. “Era uma manhã como outra qualquer. Eu estava sem dormir e cheia de dores, mas a palavra que ouvi em alguns minutos descreveu a angústia sentida na pele a vida toda.”

Indo às reuniões, encontrou na fé uma grande aliada. “Comecei a ir à Igreja no dia 25 de outubro de 1986 e, em dezembro, já estava dormindo. Comecei a ter calma. É até inexplicável para quem não entende, mas explicável para quem conhece o poder de Deus. Hoje não tomo nada: oro e durmo como uma criança”, conclui.

imagem do author
Colaborador

Flavia Francellino / Fotos: Gettyimages e Demetrio Koch