Não era amor, era cilada

Entenda por que muitas pessoas acabam vivenciando relações abusivas com agressões verbais, físicas, manipulações e até mesmo crimes

Imagem de capa - Não era amor, era cilada

No começo parece um conto de fadas. Ele (ou ela) convida você para sair, não poupa elogios quanto à sua aparência, faz declarações e surpresas. Realmente, parece que você encontrou o homem (ou a mulher) da sua vida: a materialização do seu maior desejo amoroso. Mas aí o tempo passa e o sonho se torna um pesadelo.

“A pessoa percebe que caiu em uma cilada quando as palavras amorosas se transformam em xingamentos; os abraços carinhosos viram empurrões no momento do nervosismo, depois tapas e por aí vai. Só que os problemas não se restringem apenas às agressões. Há os que se envolvem com outras pessoas por interesse financeiro, por exemplo.

Eles visam apenas seu bem próprio e assim provocam uma grande desestrutura emocional no outro”, observa a psicóloga Alessandra Souza de Amorim.

A especialista explica por que muitos insistem em relações que têm essas características: “muitas vezes essas pessoas estão inseguras, carentes e, por já estarem envolvidas em uma manipulação amorosa, acabam não vendo uma luz no fim do túnel que lhes permita mudar a situação. Outras têm medo de denunciar e acabam se culpando pela atitude do parceiro”.

Não é à toa que, mesmo com os avanços na área de direito das mulheres e com a criação de novas leis, o Brasil ainda é um país com índices altíssimos de violência e morte do gênero feminino, crime chamado de feminicídio.

Com 4,8 assassinatos a cada 100 mil mulheres, o País ocupa a quinta posição com a maior taxa de homicídios contra mulheres em um ranking de 83 países, segundo dados do Mapa da Violência 2015.

Manipulação e agressões
Era exatamente assim que a consultora financeira Elaine Aparecida Aragão, de 41 anos (foto a esq.), se sentia. Ela sabia que vivia uma manipulação no amor, mas não conseguia enxergar uma saída.

“Eu o conhecia do círculo de amizades há oito anos. Após uma festa de aniversário passamos a nos encontrar e logo iniciamos o namoro. Já na primeira semana de relacionamento percebi algo errado e desconfiei que ele estava me traindo”, conta a consultora.

No fundo, Elaine percebia que aquela relação estava começando da forma errada. “A verdade é que ele começou a me manipular porque eu estava com depressão por conta da morte de meu pai e de um amigo.”

Depois de ter conquistado a confiança de Elaine, seu namorado disse que a ajudaria a administrar seus negócios e aí tudo desandou. “Em dois meses perdi tudo. Ele e minha sócia desviaram meu dinheiro. Foi horrível porque eu e ela brigamos feio e nos agredimos fisicamente. Em relação ao meu namorado, naquele momento decidi romper.”
Mas, como estava fragilizada emocionalmente, ela acabou dando uma nova chance a ele. “Ele passou a invadir minha

casa alcoolizado fazendo chantagens, me xingava e depois dizia que me amava. Eu já não reagia mais e minha depressão só se agravava.”

Dessa forma, o cenário de terror só piorou. “Por possessividade ele me isolou de tudo e de todos e não falava que me agredia fisicamente. Já estava num ponto que tomava medicamentos controlados, vivia dopada e engordei 12 quilos. Ficava na casa da minha sogra trancada no quarto e só me alimentava à noite quando ele voltava. Ele destruiu minha moral, minha vida financeira, a saúde, a felicidade, tudo.”

Se passaram seis anos até que Elaine decidiu que ou tirava a própria vida ou dava um basta em tamanho sofrimento. “Esperei que ele saísse de casa e fugi. Com ajuda da minha tia aluguei uma casa. Ele continuou a me perseguir, mas, com o apoio dos meus familiares, o denunciei e ele foi enquadrado na Lei Maria da Penha. Por conta disso, ele teve que manter distância de mim, pagar cestas básicas, prestar serviços sociais e passar por tratamento psiquiátrico.”

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), essa lei está entre as melhores e mais avançadas do mundo quando o assunto é enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres. Em entrevista à Folha Universal a delegada de polícia aposentada Rosemary Correa, fundadora da primeira delegacia de defesa da mulher do mundo, em 1985, e atual vice-presidente do Conselho Estadual da Condição Feminina, cita a importância da Lei Maria da Penha e da existência de delegacias para denunciar a violência doméstica.

“A delegacia, além de poder fazer o atendimento, estimulou a mulher a fazer a denúncia e deu visibilidade à situação, fazendo com que o governo tivesse que criar, além da delegacia da mulher, uma série de outros mecanismos para solucionar o problema, como a Lei da Maria da Penha. As mulheres devem procurar apoio e ajuda porque, sozinhas, não vão conseguir dar fim à violência. É por isso que existem os mecanismos e as instituições”, observa.

Entre as instituições que buscam auxiliar essas mulheres está o projeto Raabe. Segundo a coordenadora do projeto no Brasil, Fernanda Lellis, o trabalho surgiu pela necessidade de oferecer estrutura segura e acolhedora às mulheres vítimas de qualquer tipo de trauma.

“Mostramos a elas quais são os seus direitos dentro da lei, mas eu gostaria de ressaltar que o projeto procura auxiliar essas mulheres emocionalmente. Muitas chegam devastadas, então fazemos um trabalho especial de reconstrução da autoestima.”

Casamento abusivo
A podóloga clínica Alexandra Lavado, de 41 anos (foto abaixo), foi uma das mulheres atendidas por esse trabalho. “Em 2016, me convidaram para participar quando fui buscar auxílio na Universal. Tinha sofrido um acidente e estava em busca de cura física, mas o que precisava mesmo era de cura emocional”, revela.

Alexandra teve tempos antes um casamento extremamente abusivo. “Me casei aos 21 anos e já na lua de mel ele se mostrou agressivo. Cheguei a ponto de ser violentada sexualmente e, por conta disso, tive um derrame. Ele me xingava e me torturava sexualmente. Foi horrível.”

Talvez você, leitor, pense que o casamento chegou ao fim depois desse episódio. Não, ela insistiu e acreditou que, se tivessem filhos, ele mudaria. “Isso não aconteceu, obviamente. Descobri que ele estava me traindo com um travesti e fazia parte de uma facção criminosa. Foi a gota d´água. Fiquei com nossos filhos pequenos para criar. Mas estava totalmente perturbada e decidi me prostituir para sustentá-los porque estávamos na miséria e passando fome.”

Nesse período, ela recebeu a notícia da morte do ex-marido. “Ele levou 32 facadas. Foi horrível contar isso para os meus filhos. Lembro que minha mãe me convidou para ir à igreja, mas me recusei”, declara.

Alexandra saía com homens casados, frequentava casas de swing e a vida que levava a afastava cada vez mais dos filhos. “A verdade é que eu achava que não os amava mais. Eu decidi abandoná-los para viver com um homem 23 anos mais velho do que eu.”

Quando buscou auxílio no grupo Raabe, Alexandra entendeu que projetou nos filhos o trauma vivenciado no casamento e que precisava curar suas feridas emocionais. “Venci meus medos e encarei meus erros. Aos poucos, fui me reaproximando deles e busquei um trabalho digno. Hoje sou podóloga e posso dizer que todas essas cicatrizes servem de exemplo para que as pessoas não passem pelo que eu passei um dia.”

Mentir para tirar proveito
Além da manipulação e dos abusos físicos e verbais, outra cilada amorosa muito comum nos dias atuais é o que o direito chama de estelionato afetivo e sentimental. A definição está no Artigo 171 do Código Civil. Ele que diz que o estelionato propriamente dito se caracteriza quando uma das partes tem a intenção de “obter para si ou para outrem vantagem ilícita em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer meio fraudulento”.

Guilherme Felipe Miguel (foto abaixo), advogado criminalista com experiência no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, explica que muitas pessoas procuram alvos considerados fáceis. “Vi muitos episódios de pessoas que se envolveram com outras por carência e foram conduzidas a um estágio emocional e de envolvimento e sujeitas a condições que provavelmente evitariam se não estivessem assim”, diz.

Foi o que aconteceu com o auxiliar de governança Armando Cardoso Barbosa, de 32 anos. Em abril de 2016 ele acreditou que tinha encontrado o amor da sua vida, mas na verdade estava sendo alvo de um estelionato. “Conheci uma moça na igreja e ela parecia ser sincera. Namoramos por seis meses até que eu a pedi em casamento. Mas naquele momento ela me disse que estava com dificuldades financeiras e me pediu um empréstimo para ajudá-la a quitar as dívidas. Estava carente e achei que fazendo aquilo a teria mais próxima de mim.”

Sem pensar duas vezes, ele deu o dinheiro a ela. “Alguns dias depois que entreguei o dinheiro ela terminou comigo sem mais nem menos. Depois simplesmente desapareceu e me deixou com um grande prejuízo financeiro e emocional.”

Ele até conseguiu encontrá-la depois de alguns meses, mas ela passou a ameaçá-lo. “Ela dizia que se eu continuasse pedindo o dinheiro de volta chamaria um ex-namorado dela que era policial para me dar uma lição. Decidi parar.”

Quando achou que tinha superado o trauma, Armando descobriu que seu CPF estava negativado por conta do golpe que sofreu. “O meu fundo de poço foi quando descobri que meu nome estava sujo por causa do empréstimo. Me senti sem dignidade e entrei em depressão”.

Armando até pensou em procurar um advogado, mas desistiu. “Pensei na dor de cabeça que daria todo o processo e abri mão do dinheiro. Depois desse fato, fiquei descrente do amor e, infelizmente, me afastei da fé.”

Nesse período, ele ficou apático, sem vontade de viver. Ao assistir a um programa da Terapia do Amor na TV, decidiu conhecer a palestra. “Quando comecei a frequentar as palestras, aprendi que precisava superar o trauma emocional e que não poderia achar que todas as mulheres são iguais. As ferramentas me ajudaram a vencer e, depois disso, conheci minha atual esposa. Ela tem comportamentos opostos aos daquela namorada. Hoje posso dizer que sou feliz no amor e que tudo que sofri serviu para ajudar pessoas que passaram pelo mesmo que eu.”

O advogado criminalista Guilherme Felipe Miguel ressalta que quem sofre algum tipo de estelionato deve acumular provas e procurar uma autoridade policial. “É essencial que a pessoa que se sentir lesada procure a autoridade policial. Também é preciso contratar um advogado capacitado para que ele avalie a situação e para que se dê o encaminhamento jurídico, seja cível, seja criminal, para o ressarcimento do dano financeiro sofrido. O dano moral será avaliado pelo juiz”, completa.

“A carência é a maior armadilha”
A frase acima é dita pela cabeleireira Liliane Bueno dos Santos, de 34 anos (foto abaixo), quando lembra as ciladas amorosas que viveu. “Eu simplesmente acreditava no que os homens me diziam quando, na verdade, o que eles queriam era dormir comigo.”

Ela já tinha dois filhos de relações anteriores quando casou novamente para ser feliz. “Como tinha sido abandonada nas outras duas relações, coloquei na minha cabeça que seria feliz com ele acontecesse o que fosse, mas a cada dia que passava era mais maltratada e negligenciada.”

Liliane era traída com frequência e, quando descobriu a gravidez do terceiro filho, achou que o ex-
marido mudaria de comportamento. “Na verdade ele piorou. Cheguei a descobrir novas traições pelas redes sociais e o flagrei com a amante. Foi horrível. Depois daquele dia tentei me suicidar.”

Em 2015, quando assistia TV de madrugada, viu a história de uma mulher que era semelhante à sua. “Eu pensei: ‘como ela pode ter mudado de vida, ter se casado novamente e ser feliz?’ Decidi ir conhecer o Templo de Salomão e participar da Terapia do Amor. Lá conheci uma realidade que para mim não existia”, observa.

A cabeleireira entendeu que era uma escolha dela continuar no papel de vítima. “A verdade é que descobri uma Liliane carente que aceitava qualquer tipo de homem. Vivia de migalhas. Venci meus medos e hoje sou outra mulher.”

Encontrando a felicidade amorosa
A psicóloga Alessandra Amorim salienta que quando uma pessoa permite uma agressão, por exemplo, ela acaba aceitando algo pior. “Se ele ou ela aceita ouvir xingamentos, com o passar do tempo, virarão agressões físicas. Se aceita o estelionato e a traição, provavelmente acontecerão posteriormente o abuso físico e verbal. Isso porque o abusador se sente no direito de desrespeitar o outro da forma que quiser.”

Por isso, os apresentadores e palestrantes Renato e Cristiane Cardoso alertam que não se pode condicionar a alegria de viver a outra pessoa. “Antes de amar e ser amado por alguém, toda pessoa tem que estar bem consigo mesma. Precisamos nos focar em nós mesmos. Nossa felicidade não pode depender de alguém”, observa Cristiane.

“O primeiro relacionamento que você tem é consigo mesmo e, se neste relacionamento você não está bem, tampouco estará bem com qualquer outra pessoa. A fé e a força interior lhe ajudam a reconstruir seu eu e lhe dão base para um relacionamento feliz. Trabalhe nessa base”, acrescenta Renato.

Se você prestou atenção nas histórias, deve ter notado algo em comum nelas: todas as pessoas eram inseguras e insistiram em relações extremamente abusivas que destruíram ainda mais sua autoestima.
Elas se permitiram ser vítimas. Entende a diferença? Quando uma pessoa se ama e se valoriza, ela não aceita o avanço do abusador, ela impõe limites.

Por isso, se você percebe que está com baixa autoestima, tem insegurança e acredita que só será feliz quando tiver um casamento ou uma pessoa ao seu lado, não se permita iniciar uma relação antes de vencer todas essas questões. São esses sentimentos ruins que levam uma pessoa a cair em todas as ciladas amorosas que existem.

Então, cuide de você, se ame, se valorize, para depois viver um grande e verdadeiro amor. Deus pode te ajudar a vencer tudo isso.

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Colaborador

Ana Carolina Cury / Fotos: Fotolia e Demetrio Koch / Arte: Eder Santos