A lei que coloca crianças em risco

Inspirada em teoria rejeitada por órgãos de saúde, a lei de alienação parental brasileira tem brechas que podem levar crianças vítimas de abuso sexual a viver com pais suspeitos

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Maria* tinha pouco mais de 3 anos quando fez uma reclamação à mãe. “Ela relatou que estava com dores na região anal. Fiz perguntas a ela, achei que fosse algo no banho, mas ela disse que o pai ficava mexendo e doía muito”, explica Ana*, uma pedagoga de 44 anos. Na época, ela estava casada havia mais de oito anos com o pai da menina. “Éramos uma família feliz, nunca pensei em abuso. Perguntei ao meu marido o que tinha acontecido e a reação dele foi inusitada. Ele chamou minha filha de mentirosa e perguntou por que ela dizia que o papai a machucava. Era a primeira vez que ela contava aquilo para mim”, lembra, emocionada.

Ela levou a filha à pediatra, que constatou que havia algo errado. “A pediatra detectou vermelhidão e inchaço na região e disse que eu deveria ter muita coragem. Foi assim que entrei com processo de separação de corpos e medida protetiva. Conheço o jeitinho da minha filha, sabia que ela não estava inventando, a marca do machucado estava lá, eu só queria protegê-la”, detalha ela, que iniciou um processo criminal contra o pai da criança em 2013.

Um ano depois, a defesa do pai da menina abriu um processo na Vara da Família com base na Lei 12.318/2010, conhecida como Lei de Alienação Parental, alegando que a mãe estaria tentando afastar a menina do convívio paterno. “Desde que ele alegou alienação, o processo que investiga estupro de vulnerável ficou em segundo plano. A defesa dele também diz que minha filha tem problemas intestinais graves e que a dor seria provocada pelas fezes, mas ela nunca teve esse problema, é surreal”, diz.

A menina passou por avaliação, mas não houve indício de alienação. Ainda assim, há dois anos Ana é obrigada a levar a filha para visitar o pai em um centro monitorado por especialistas ligados à Justiça. “No início, minha filha ficava animada, ganhava presentes. Com o tempo, ela voltou a ter crises de choro, pânico noturno e não queria mais ir lá, mas sou obrigada a levá-la, caso contrário serei acusada de alienadora”, conclui ela, que tem medo de perder a guarda da filha. O processo contra o pai da criança ainda está em trâmite.

A lei

O conceito de síndrome de alienação parental (SAP) foi criado na década de 1980 pelo médico norte-americano Richard Gardner, conhecido por colaborar na defesa de homens acusados de pedofilia e abuso sexual. Segundo Gardner, a síndrome se instalaria em crianças por conta de campanhas de difamação promovidas por um dos cônjuges, geralmente a mãe, durante ou depois de processos de separação. Essa teoria serviu de inspiração para a legislação brasileira.

Entretanto, a SAP nunca foi reconhecida como síndrome ou doença e é rejeitada pela Organização Mundial de Saúde e pelas associações americana e espanhola de psiquiatria. Hoje, só o Brasil mantém uma lei baseada na chamada alienação parental. Em 2017, o México revogou uma lei semelhante por recomendação da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Enquanto a lei vigora, especialistas denunciam que ela desmerece o testemunho de crianças vítimas de violência ou abuso sexual. Em documento elaborado para o site da União pela Defesa da Infância, a psicanalista Ana Iencarelli e a promotora de justiça Valéria Scarance, do Ministério Público de São Paulo, alertam que a lei tem sido usada como estratégia de defesa de homens acusados de abuso.

Violência sexual

Enquanto muitas denúncias de violência sexual contra crianças são ignoradas pela Justiça e tomadas como alienação parental, o número de abusos não para de crescer no Brasil. Um levantamento divulgado em junho pelo Ministério da Saúde indica que houve um aumento de 83% nas notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes entre 2011 e 2017. A maioria dos casos ocorreu dentro de casa e os agressores são pessoas do convívio das vítimas, como familiares. Os homens são os principais autores de violência sexual, sendo responsáveis por 81,6% dos casos envolvendo crianças. Entre as crianças, o maior número de casos é registrado entre aquelas mais jovens, com idade entre 1 e 5 anos (51,2%).

Situação atual

Apesar de controversa, a Lei de Alienação Parental prevê punições preocupantes, como inversão de guarda e até privação de contato entre a criança e o genitor acusado de ser “alienador”. A advogada Patrícia Alonso explica que a lei tem colocado crianças em risco. “A pessoa que tenta proteger a criança após suspeita de abuso acaba sendo acusada de alienadora. O abuso sexual contra crianças é difícil de provar. O resultado inconclusivo de um laudo não significa que o crime não ocorreu, mas muitos legisladores desconsideram o testemunho da criança e fazem a reversão de guarda, entregando a vítima a seu algoz”, diz.

A advogada Cláudia Galiberne Ferreira aponta que a falta de pessoal qualificado e treinado em conflitos familiares é um dos agravantes do quadro brasileiro. “Muitas comarcas nem sequer possuem assistente social ou psicólogo, isso é um grande complicador, inclusive para a implementação de práticas salutares como a da escuta protegida”, diz ela, referindo-

se à Lei 13.431/2017, que está em vigor e determina que a criança seja ouvida por especialistas, de forma reservada e em depoimento gravado, para evitar sua exposição. Sem a padronização de procedimentos, muitas crianças ainda passam por acareação com a pessoa acusada de cometer abusos, como foi o caso da menina Maria*, citada no início do texto.

“Se há denúncia de violência e/ou abuso, a criança deve ser afastada do convívio do possível abusador até que se comprove a validade ou não de tais acusações. No caso de dúvida, sempre, proteja-se a criança”, completa Cláudia. Ela defende a revogação da Lei 12.318/2010. “Não há como defender uma lei sem qualquer respaldo científico. O uso malicioso de tal teoria é inerente à sua criação. A teoria da alienação parental, por si só, impede a defesa daquela pessoa acusada de atos alienatórios, uma vez que a própria negativa da prática dos supostos ‘atos alienadores’ é apontada como um dos ‘indicativos’ de sua ocorrência”, finaliza.

*Os nomes são fictícios para proteger a identidade de mãe e filha e não prejudicar o direito de defesa do acusado

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Colaborador

Por Rê Campbell / Foto: Fotolia