A realidade dos erros médicos

A cada três minutos, dois brasileiros morrem por falhas em hospitais do País. Confira os relatos de quem quase fez parte dessa estatística

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Recentemente, os noticiários divulgaram o caso de uma menina de 12 anos que morreu após uma doença grave nos rins e nos pulmões que foi diagnosticada erroneamente como gases.

Horas antes de morrer, ela foi levada à Unidade Básica de Saúde (UBS) de seu bairro, em Iperó, São Paulo, mas foi orientada a voltar para casa. Como o mal-estar persistia, a menina foi levada a outra unidade de saúde. Contudo, não pôde ser avaliada, pois estava fora da faixa etária que era atendida no local.

A família seguiu para outro posto médico, onde foi informado que o quadro, na verdade, era muito grave e que ela estava com edema pulmonar e insuficiência renal. No entanto, não havia mais tempo para que fosse tratada. Alguns minutos depois do atendimento, ela faleceu.

Infelizmente, erros em atendimento médico têm sido muito comuns atualmente. Esse cenário é tão espantoso que a Organização Mundial da Saúde o reconhece como um problema de saúde pública. E não é para menos, já que, no mundo todo, acontecem 42,7 milhões de complicações hospitalares em um universo de 421 milhões de internações realizadas por ano.

No Brasil, o número de falhas médicas é assustador. Conforme um estudo divulgado no final de 2016 pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pelo Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), até 434 mil pessoas podem ter morrido em 2015 por erros desse tipo enquanto estavam hospitalizadas nos sistemas público e privado do País – o que equivale a dois óbitos a cada três minutos.

De acordo com o estudo, essas mortes estariam à frente daquelas causadas por doenças do aparelho circulatório (que mataram mais de 339 mil pessoas em 2013) e até por câncer (que respondeu por mais de 196 mil óbitos em 2013).

Falha dos medicamentos

Simone Tateishi (foto ao lado), de 37 anos, quase fez parte dessa grave estatística. No ano passado, ela começou a apresentar dores nas costas e no peito, tosse, febre, calafrios e falta de ar.

Após exames, ela foi diagnosticada com tuberculose pulmonar e passou a tomar um antibiótico recomendado por um médico, mas continuou com os mesmos sintomas. “Fui a outro médico que me disse que o diagnóstico estava correto, que não deveria criticar um colega de profissão, mas que ele havia errado feio no medicamento e na dosagem, pois aquele remédio era apenas indicado para infecções em crianças e jamais para tratamento de tuberculose”, explica.

Simone passou a tomar um novo medicamento, mas ele acabou lhe causando fortes dores de cabeça e queda brusca de unhas e cabelos. Em nova visita ao médico, ela descobriu que o novo antibiótico estava prejudicando seu fígado. “Eu já havia tido problemas no fígado anteriormente, mas isso já estava regredindo. Só que o médico que receitou o antibiótico não me perguntou nada sobre meu histórico e uma das contraindicações é o uso justamente por pacientes com problemas hepáticos”, alega.

O fígado de Simone parou de receber irrigação sanguínea e quase parou de funcionar. Devido à gravidade de seu quadro, seu organismo ficou comprometido e ela poderia até morrer.

Mas Simone não aceitou essa complicação e recorreu a Deus. “No começo, pensei que Deus estava permitindo isso para que eu desse uma desacelerada e cuidasse mais de mim. Mas depois de um tempo, como tudo virou uma bola de neve, lembrei que Jesus havia levado sobre si todos os nossos pecados e doenças e então me revoltei contra a situação”, conta.

Ela fez tudo o que os médicos recomendaram como tratamento, mas expressou sua fé para que Deus fizesse justiça em sua vida. “Por causa do risco de contágio da tuberculose, eu estava afastada das reuniões e do trabalho na igreja. Comecei a achar injusto. Eu pensava ‘poxa, tanta gente precisando e eu disposta a fazer, mas tendo que ficar de fora’. Então, conversei com Deus que não arriscaria tomar outro tipo de medicamento, pois já estava tomando a água consagrada todos os dias.” (Na Universal todos os domingos é realizada uma oração para abençoar a água que o participante
leva à reunião.)

Não demorou muito para que sua fé trouxesse a resposta. Além da recuperação do fígado, Simone conseguiu se curar do problema nos pulmões, sem ficar com sequelas.

A culpa é de quem?

As complicações durante atendimentos médicos ocorrem por causa de uma infinidade de eventos adversos, como erros na dosagem de medicamentos, uso incorreto de equipamentos e até infecção hospitalar.

As causas também podem estar relacionadas aos profissionais, como baixa remuneração e longas jornadas de trabalho. Porém, nem sempre estão diretamente ligadas a eles, mas a um conjunto de falhas no sistema de saúde, como explica Renato Couto (foto ao lado), professor da Faculdade de Medicina da UFMG e um dos responsáveis pelo estudo. “O determinante é a má organização do trabalho. A atividade assistencial é muito complexa e organizá-la não é algo trivial. Por isso, há técnicas de gestão específicas para esse tipo de organização que não se encontram disseminadas no País, mas que são necessárias para controlar o problema”, diz.

Segundo a pesquisa, grande parte da rede hospitalar não atende aos requisitos mínimos necessários para a segurança dos pacientes. Muitos hospitais, por exemplo, têm superlotação, falta de insumos e informações desatualizadas, que podem causar os erros médicos.

Outro fator que prejudica o atendimento é a falta de transparência dos hospitais. O professor destaca que, no Brasil, eles não são obrigados a divulgar indicadores de qualidade, como tempo de internação ou número de mortes. Além disso, as instituições acabam sendo beneficiadas pelo método de pagamento, que remunera o procedimento e não o resultado gerado. Isso significa que, se uma pessoa fica mais tempo hospitalizada por causa de uma complicação, por exemplo, em vez de o hospital ser punido por não ter prevenido o problema, acaba ganhando mais pelo tempo extra que a pessoa ficou lá. “O modelo de pagamento é o indutor do péssimo funcionamento. Quanto maior a qualidade de organização, menos ela ganha”, aponta Couto.

Além das vidas perdidas, inúmeros pacientes ficam com sequelas graves. Fora isso, há ainda os gastos decorrentes de processos, que, em 2015, consumiram entre R$ 5,19 e R$ 15,57 bilhões de recursos só na saúde privada brasileira. “Em um sistema de saúde em que todos falham, todos perdem. Os pacientes e suas famílias certamente são as maiores vítimas, mas há sofrimento de toda a equipe de saúde, além de perdas econômicas para todo o sistema”, observa o professor.

Para Luiz Aramicy Pinto, presidente da Federação Brasileira de Hospitais (FBH), a maioria dos óbitos ocorre em atendimentos de emergência. “São pacientes que estão com possibilidade de sobrevida bem menor do que um paciente submetido a uma cirurgia eletiva, por exemplo.”

Ele admite que a superlotação que existe na maioria dos hospitais pode causar erros médicos, mas considera que “dentro da estatística o erro é previsto”. “O que nós da Federação procuramos orientar é que os hospitais estejam sempre informados, acompanhando a legislação que frequentemente está mudando e que eles não atendam acima da sua capacidade”, informa.

O presidente ainda observa que a Federação está atenta ao controle para minimizar as falhas. “A FBH tem a missão de orientar os hospitais para que ofereçam materiais, medicamentos e equipamentos para que os pacientes tenham condições adequadas à sua plena recuperação.”

Acidente reparado

Leandro Fontes (foto ao lado), de 26 anos, teve de enfrentar as complicações de uma falha médica após um tratamento odontológico. Há pouco mais de quatro anos, ele foi diagnosticado com um desgaste na articulação temporomandibular (ATM), responsável pelos movimentos da mandíbula, que no seu caso estava enrijecida. A indicação foi de que fizesse uma cirurgia para corrigir a lesão. “Eu não sentia dores na região nem dores de cabeça constantes, mas o médico disse que isso poderia ocorrer no futuro e que o ideal era fazer a artroscopia de forma preventiva.”

Apesar de a cirurgia ser simples e não invasiva, um nervo da face de Leandro foi lesionado, o que lhe causou paralisia no lado direito. Os profissionais, naquele momento, disseram-lhe que o dano seria irreversível e que o nervo jamais voltaria ao seu estado normal.

Para o jovem, o fato não passou de um acidente, mas poderia ter sido prevenido. “O médico responsável pela cirurgia é muito conceituado em sua área. Mas acredito que eu deveria ter sido previamente avisado quanto aos riscos, o que não aconteceu”, relata.

Como o problema era considerado pelos médicos sem solução, o único procedimento a ser feito era a fisioterapia facial. Mesmo assim, ele não desanimou. “Não comentava com ninguém a possibilidade de conviver com aquele problema para resto da vida, pois em momento algum duvidei de que o meu rosto voltaria ao normal. Sabia que Deus não iria me desamparar”, alega.

Leandro fez orações, propósitos de fé e não deu ouvidos à dúvida de que iria se recuperar. Aos poucos, a parte direita de sua face foi voltando ao normal. “Eu simplesmente usei a fé e fui crendo na Palavra de Deus. Foi gradativa a recuperação e hoje o problema é imperceptível”, comemora.

Quase paraplégica

A jovem Caroline dos Santos Oliveira (foto ao lado), de 18 anos, passou por um problema semelhante quando ainda era criança. Aos 7 anos, ela foi diagnosticada com um pequeno desvio na coluna, que, com o tempo, foi se agravando.

Quando a mãe percebeu que a coluna dela estava ficando torta, procurou um especialista, mas o tratamento só veio anos depois. “Demoraram sete anos para decidir o que fazer, porque esse tipo de escoliose era raro. Depois de vários exames resolveram operá-la.”

Após o procedimento, Caroline notou que não sentia o movimento das pernas. Sua mãe, ainda sem obter informações precisas dos médicos, manifestava a sua fé para conseguir a recuperação da filha. “Ela passava azeite nas minhas pernas e orava todos os dias. Aos poucos, consegui sentir o movimento de novo.”

Apenas oito dias após a cirurgia, Caroline e sua mãe ouviram do médico que um nervo havia sido lesionado durante o procedimento. “Um dos médicos disse que bateu em um nervo da coluna, o que prejudicou os movimentos das minhas pernas e causaria paraplegia. Mas, antes do médico terminar de falar, minha mãe contou que o pior já tinha passado. Ele, sem acreditar, foi direto ao quarto para verificar se realmente era verdade.”

Depois da alta médica, a jovem descobriu que o procedimento foi feito erroneamente. Se não fosse a fé em Deus, Caroline poderia ter ficado com uma sequela muito grave. “O médico acabou revelando que aquela tinha sido a primeira experiência deles com um caso desse tipo e que era para terem sido colocadas placas na minha coluna, mas, na verdade, fizeram um enxerto em mim”, alega.

Para mudar o cenário

A tramitação de processos por erros médicos no Brasil geralmente é muito lenta e são raros os casos de cassação do diploma. De acordo com o advogado Elton Fernandes (foto ao lado), especialista em Direito da Saúde, ainda se vê muita impunidade. “Há casos que tudo leva a crer que houve erro médico, mas o silêncio dos envolvidos e a pressão são tão grandes que ninguém fala, dificultando, inclusive, a realização de um trabalho de prevenção. Já vi até o prontuário médico ser alterado para evitar que o paciente descubrisse o erro e para que tudo parecesse apenas uma complicação natural da cirurgia”, aponta.

Ele destaca que, na maioria dos casos, os pacientes atestam que foram enganados pelos profissionais, especialmente quando se trata de cirurgias plásticas, principal área de reclamação. “Muitos casos poderiam não ter chegado à Justiça se o paciente tivesse sido claramente informado acerca de todos os riscos. Não se trata de oferecer uma informação genérica, mas sim de cientificá-lo dos riscos reais”, sugere.

Para o advogado, ainda há uma distância muito grande entre médico e paciente. “Como não se cria uma relação de confiança, duradoura, todo insucesso é imediatamente questionado. Tenho acesso a uma pesquisa feita nos Estados Unidos que aponta que a maioria dos pacientes que processou seus médicos queria apenas ouvir um simples pedido de desculpas. Apenas nos casos mais graves, a maioria afirma que tem como principal objetivo uma indenização”, destaca.

Quando uma pessoa passa por um erro médico ela pode denunciar a instituição e o profissional. O objetivo não é prejudicar pessoas ou punir, mas reparar direitos para que os cuidados sejam redobrados e se evitem mais falhas.

É fundamental que médicos e locais de assistência ofereçam atendimento marcado por um bom relacionamento pessoal, com dedicação e tempo de atenção, e que pacientes ou responsáveis aprendam a questionar a forma como serão assistidos e que não julguem toda a categoria por causa de um
caso isolado.

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Colaborador

Por Janaina Medeiros / Fotos: Fotolia, Mídia FJU Bahia, Divulgação, Demetrio Koch e Cedida / Arte: Edi Edson