Crime silencioso, marcas gritantes

É possível eliminar o trauma e a dor de ter sofrido um abuso na infância e adolescência? Conheça histórias de quem conseguiu vencer os dramas do passado

Imagem de capa - Crime silencioso, marcas gritantes

Numa época como esta, em que milhões de pessoas comemoram as festas de fim de ano, Mônica da Silva de Medeiros (foto abaixo), de 42 anos, vivia seus piores dias. Na rua, sem família e sem amigos, ela carregava no peito a dor e o trauma de ter sido abusada sexualmente pelo próprio pai durante a infância. Questionamentos a respeito da permissão de Deus e pensamentos de morte se repetiam em sua mente.

Mônica conta que não entendia o que o pai queria com ela durante a noite. A inocência dos 7 anos a fazia acreditar que aquele era um gesto de amor. “Ele esperava que todos dormissem, vinha à minha cama e começava a me tocar. Eu achava que era uma forma de demonstrar carinho, mas, como se repetia todas as noites, passei a ficar com medo, até que, além do toque, ele passou a me estuprar”, lembra.

Assustada, ela contou para a mãe, que evitou falar sobre o assunto e preferiu não acreditar na filha. “Fiquei muito triste e revoltada, como podia minha própria mãe fingir não ver tamanho crime? Para me livrar daquilo fui morar nas ruas. Saí de uma desgraça e passei a viver outra. Comecei a me drogar e a fazer tudo de errado com apenas 9 anos”, diz.

Mas as drogas não preenchiam o vazio ou apagaram aquelas lembranças. “Em meio à depressão passei a roubar para manter o vício. Com 16 anos já tinha dois filhos. Cheguei a ser presa três vezes e durante a última um programa de rádio da

Universal chamou minha atenção. O bispo falou ‘para você que está aí, sozinho, pensando em se matar, existe uma saída. Não importa o que aconteceu, você pode recomeçar’. Me enchi de esperança e ao ser solta passei a frequentar a igreja”, recorda.

A fé foi crucial para o perdão e o recomeço de vida. “Quando eu aceitei Jesus e fui batizada, me libertei dos vícios e perdoei minha mãe e meu pai. Não foi fácil porque tinha muito ódio deles. Hoje minha mãe é obreira na igreja e eu sou evangelista e educadora da Escola Bíblica Infantojuvenil. No ano que vem começarei a faculdade de pedagogia”, completa Mônica, que é mãe de sete filhos e tem cinco netos.

Dor que gera culpa

Infelizmente, o abuso sexual na infância e na adolescência é comum. Segundo dados do serviço Disque Denúncia Nacional de Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes, a cada hora 7 crianças são abusadas no Brasil. Em mais de 70% dos casos, os abusadores são pessoas da família.

A médica psiquiatra Célia Mendes explica que esse tipo de violência usualmente acontece de forma repetitiva, insidiosa, em um ambiente relacional favorável, sem que a criança tome inicialmente consciência do ato abusivo do adulto, levando-a a crer que é culpada por seu procedimento (o abuso). “O agressor usa da relação de confiança que tem com a criança ou o adolescente e de poder como responsável para se aproximar cada vez mais, praticando atos que a vítima considera inicialmente como demonstrações afetivas e de interesse”, afirma.

As abordagens levam a um sentimento de insegurança e dúvida. “Quando o agressor percebe que a criança começa a entender o ato como abuso ou como anormal, tenta inverter os papéis, impondo a ela a culpa de ter aceitado seus carinhos, e passa a exigir silêncio, com ameaças à vítima e às pessoas de quem ela mais gosta ou depende”, analisa.

Foi esse sentimento que assombrou a vida de Erica Aparecida da Silva (foto ao lado), de 42 anos, professora, por muitos anos. “Quando era bebê fui abandonada pela minha mãe. Fiquei em um orfanato e aos 12 anos fui adotada por algumas famílias. Na terceira casa que passei vivenciei o primeiro assédio”, revela.

A professora já tinha baixa autoestima por ter sido rejeitada e no novo lar viveu mais dor e decepção. “Tinha 13 anos de idade na época. O abuso sexual aconteceu em uma madrugada quando minha mãe adotiva tinha saído para trabalhar. Meu pai adotivo passou a mão pelo meu corpo dando risada e me mandou deitar na cama”, relata.

Na manhã seguinte, ele acordou e foi procurá-la. “Olhei para ele assustada, minhas pernas não me obedeciam. Ele olhou dentro dos meus olhos e falou em tom de ameaça para eu não contar para ninguém”, diz.

Naquele mesmo dia Erica tentou o suicídio. “Dias depois, uma professora me procurou para saber por que eu estava tão agressiva. Após muitas tentativas de diálogo, ela ganhou minha confiança e me abri. Um dia, mais fortalecida, resolvi fazer uma carta de agradecimento para essa professora e minha mãe descobriu tudo”, acrescenta.

Ela defendeu o marido e acusou Erica. “Ela disse que eu tinha acabado com o casamento dela e me colocou para fora de casa. Saí humilhada, despedaçada, sentia dores nas partes íntimas na hora do banho, tinha nojo de mim mesma. Entrei em depressão e tentei o suicídio de novo”, diz.

Uma senhora que trabalhava naquela casa ficou com a tutela de Erica e a cunhada dela convidou a jovem para conhecer a Universal. “No início não queria ir, mas, ao frequentar as reuniões, recebi a orientação de perdoar. Relutei, pois ele tinha acabado com a minha vida, mas vi que aquela era a única saída”, explica.

Erica decidiu colocar uma pedra em cima do passado e buscou conhecer a Deus. Ela começou a participar das reuniões da Cura Interior, curso do Projeto Raabe, e foi totalmente curada.

Hoje, formada em pedagogia com pós-graduação em psicopedagogia, Erica se diz uma mulher segura. “Entrei no grupo Godllywood, que me ensinou a ser uma mulher de verdade, que se ama e sabe seu valor. Fiz meu trabalho de conclusão de curso a respeito da minha superação”, conclui a jovem, que hoje atende e ajuda pessoas vítimas de assédio.

Erica já ajudou a cuidadora de crianças Aurora Maria Lins da Silva (foto ao lado), de 43 anos, com sua experiência. “Fui vítima de abuso e guardei isso dentro de mim durante muitos anos. Minha vida amorosa era fracassada, vivia pulando de relação em relação até que, quando estava no Godllywood, vi o testemunho da Erica a respeito do Projeto Raabe e, desde então, minha vida mudou. Me sinto livre de todos os traumas, pronta para recomeçar”, declara.

Quando as vítimas são meninos

O futebol inglês vive um pesadelo após a denúncia do ex-jogador, Andy Woodward. Ele revelou em entrevista à BBC ter sofrido abuso sexual no início da carreira pelo técnico do time. Depois dele, outros 350 jogadores criaram coragem para denunciar e a Associação de Jogadores de Futebol Profissional afirmou em nota que teme que esse número seja ainda maior.

“É preciso ressaltar que o caso de assédio de meninos é alto. O perfil das vítimas ainda é maior no sexo feminino, com 47% dos casos, mas 38% são meninos. E eles ocorrem com maior incidência na faixa etária entre 8 e 14 anos”, explica a pedagoga e mestre em educação Letânia Kolecza.

O estudante Gabriel Camim Lippa (foto ao lado), de 20 anos, sofreu um abuso quando tinha apenas 5 anos. “Um parente próximo disse para eu colocar a genital dele na minha boca, mas eu não queria, disse a ele que aquilo era errado, mas ele insistiu e disse que não era e que eu podia confiar nele. A partir dali me tornei inseguro em tudo que faz
ia e queria estar sempre próximo
da minha mãe”, diz.

Gabriel tinha muito medo de ficar perto do agressor, que o ameaçava constantemente. Desesperado, ele decidiu contar aos pais o que estava acontecendo. “Tentei falar, mas não me escutaram nem notaram os sinais. Meus pais brigavam muito e meu pai batia na minha mãe. Quando me deitava, tinha muita insônia e culpava Deus pelo que tinha acontecido comigo”, desabafa.

Após tentar se matar, Gabriel passou por consultas com psicólogos, até que sua mãe o convidou para ir à igreja. “Tinha 16 anos e ouvi uma palavra que mudou meu interior. Ao participar das palestras decidi perdoar o agressor, meu pai e me livrei totalmente de tudo. Veio a paz, a alegria e passei a ter atitude e a ser seguro”, comemora.

Dessa forma o que era motivo de tristeza se tornou uma história de superação. “Venci porque não aceitei viver com aquele trauma dentro de mim, não queria mais ser escravo do passado. A mudança depende de nós. Hoje ajudo outras pessoas a vencerem essa dor e digo a elas que é
possível”, conclui.

Como recomeçar?

O abuso sexual infantil é considerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) um dos maiores problemas de saúde pública. Para combater esse crime é importante dar três grandes passos: prevenir, denunciar e superar.

“O primeiro passo é explicar às crianças e adolescentes quais partes do corpo deles não devem ser tocadas. Em tempos em que a internet faz parte da rotina dos menores, o cuidado deve ser ainda mais rigoroso. É importante os pais estarem presentes”, esclarece a psiquiatra Célia. A pedagoga Letânia completa: “nunca duvide de seu filho. Se ele der sinais, denuncie à polícia (190) e ao Disque Denúncia Nacional (100)”.

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Colaborador

Por Ana Carolina Cury / Fotos: Fotolia, Demetrio Koch, Alicia Montalvo e Arquivo pessoal / Arte: Edi Edson